O velho Gilberto Freyre.

Gilberto Freyre rejeitou ideias racistas em ensaio de interpretação do Brasil

A GUERRA DAS RAÇAS

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Gilberto Freyre atacou, em Casa-Grande & Senzala, as concepções raciais e os determinismos climáticos adotados tanto pelos nacional-socialistas quanto por intérpretes consagrados do Brasil, como o crítico Sílvio Romero, o escritor Euclides da Cunha e o sociólogo Oliveira Viana, que responsabilizavam o clima tropical insalubre e as populações mestiças, tidas como neurastênicas e degeneradas, pelo atraso do país. Freyre mostrou, ao contrário, que a origem de tal atraso estava em causas sociais de alimentação e higiene.

Ao contrário dos intelectuais da época, que olhavam com desprezo as manifestações populares, Freyre valorizou a cultura brasileira por seu caráter sincrético e criticou os preconceitos sobre a inferioridade dos negros, índios e mestiços e a visão pessimista do país adotada pelas elites e pelos intelectuais. Mostrava ser desprovida de fundamento a afirmação da superioridade ou da inferioridade de uma raça sobre a outra, ainda que acreditasse na existência de uma hierarquia entre as diversas formas de cultura.

Conseguiu assim a façanha teórica de dar caráter positivo ao mestiço. Hermano Vianna observou, em O Mistério do Samba, que o brasileiro “passou a ser definido como a combinação, mais ou menos harmoniosa, mais ou menos conflituosa, de traços africanos, indígenas e portugueses, de casa-grande e senzala, de sobrados e mucambos”.3 Antes vista com um misto de horror e vergonha, a mestiçagem se convertera em fusão harmoniosa de raças e culturas e em valor a ser preservado, por garantir a especificidade do Brasil diante de outras nações.

Roquete-Pinto lançara idéias semelhantes, ao desmoralizar, no Congresso de Eugenia em 1929, a crença na má qualidade do mestiço brasileiro e a necessidade de sua substituição pelo imigrante europeu, com o objetivo de purificar e branquear a população brasileira. Defendia, em seu lugar, o aperfeiçoamento educacional e político, única solução para os males do país. O médico e historiador sergipano Manoel Bomfim apresentara idéias semelhantes em A América Latina, livro de 1905, massacrado por Sílvio Romero, que despejou sobre seu autor uma enxurrada de 25 artigos irados.4

Casa-Grande & Senzala teve o impacto de um manifesto cultural e político por sua contundente crítica ao racismo e pelo enfoque inovador da escravidão, da monocultura e do latifúndio, sob a ótica da cultura e da economia. Formulava, já no prefácio, sua ruptura com as teorias racistas e relatava sua conversão quase mística à abordagem culturalista, ensinada por Franz Boas no departamento de antropologia de Columbia. O jovem Freyre transformava o anti-racismo de Boas em profissão de fé, que iria substituir seu protestantismo dos tempos de aluno do Colégio Americano Gilreath no Recife ou de pregador batista nos bairros pobres da cidade, e ainda enquanto estudante com bolsa de estudos da Igreja protestante na Universidade de Baylor, em Waco, Texas.

Conta assim, no prefácio de Casa-Grande & Senzala, a profunda impressão que lhe causaram os ensinamentos do mestre Boas:

– Foi o estudo de Antropologia sob a orientação do Professor Boas que primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo valor – separados dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência cultural. Aprendi a considerar fundamental a diferença entre raça e cultura; a discriminar entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de influências sociais, de herança cultural e de meio. Neste critério de diferenciação fundamental entre raça e cultura assenta todo o plano deste ensaio.

Mas essa conversão ao culturalismo não se deu apenas nas salas de aula e nas bibliotecas de Nova York e Washington. Surgiu também de uma cena de rua, da qual nasceu toda a sua obra. Depois de mais de três anos de ausência do país, viu em Nova York um bando de marinheiros brasileiros do navio Minas Gerais, que andavam pela neve mole do Brooklyn, conforme contou em carta a Oliveira Lima, de janeiro de 1921, e depois no préfacio de seu livro de 1933. Tais compatriotas mestiços lhe pareciam, pelo aspecto doente e desgracioso, “caricaturas de homens”, cuja debilidade física não resultaria de traços raciais inferiores ou de taras hereditárias, mas da persistência, através de gerações, de condições sociais e econômicas desfavoráveis ao desenvolvimento humano.

O passado escravocrata brasileiro deixara como saldo a pesada herança da monocultura e do latifúndio, responsáveis pelas deficiências alimentares da subnutrida população nacional. Freyre propôs portanto a superação da idéia de raça e a sua substituição por um enfoque centrado na economia e na cultura, no que se aproximava de antropólogos brasileiros, como Artur Ramos e Roquete-Pinto, e de escritores latino-americanos, como o cubano Fernando Ortiz, o mexicano José Vasconcelos e os peruanos José Carlos Mariátegui e José Maria Arguedas.

Manteve porém, em uma das muitas contradições de seu pensamento, um viés evolucionista, ao tomar a raça como sinônimo de caráter e cultura e acreditar na existência de povos mais ou menos adiantados, o que entrava em contradição com a pretendida superação dos modelos biológicos e raciais. Afirmou a existência de culturas superiores, como os africanos maometanos trazidos da África, adeptos de uma religião monoteísta, cuja presença na colônia portuguesa teve uma função civilizadora. Proclamou a superioridade técnica do negro sobre o indígena e até sobre o branco no que se refere ao trabalho de metais, à criação de gado, à alimentação e à culinária.

Essa mistura peculiar de culturalismo e evolucionismo se explica, em parte, pela admiração que tinha, na juventude, por autores positivistas, como o francês Hippolyte Taine, para quem a história era determinada por meio, raça e momento, o filósofo Auguste Comte, que pregava a existência de fases lineares do desenvolvimento humano e social, e sobretudo o inglês Herbert Spencer, que concebia o homem e a sociedade como regidos pelo princípio da evolução, que caminharia sempre do simples para o complexo, do homogêneo para o heterogêneo. Bebendo nas mesmas fontes de intérpretes do Brasil como Sílvio Romero e Euclides da Cunha, cujas idéias racistas iria rejeitar, Freyre deu aos 16 anos sua primeira conferência, em Paraíba (atual João Pessoa), sobre “Spencer e o Problema da Educação no Brasil”.

Segundo seu biógrafo Vamireh Chacon, Gilberto Freyre captou de Spencer a importância das vestimentas, da alimentação e da “arte da vida”, com os detalhes significativos do cotidiano. Spencer tinha também uma visão ecológica de defesa do meio natural, que Freyre adotaria em Nordeste, de 1937, que definiu como uma “tentativa de estudo ecológico” da região. Voltou ao filósofo inglês no livro metodológico de 1945, Sociologia, tomando-o como um dos iniciadores dos estudos sociológicos, ao lado de Comte.

Freyre se manteve preso, de forma ambígua, às idéias de raça e etnia, apesar de rejeitar o racismo de Romero, Euclides ou Nina Rodrigues, como mostrou Luiz Costa Lima em A Aguarrás do Tempo. A permanência de uma lógica racial em Casa-Grande & Senzala abala a insistente pretensão de originalidade de Freyre, que recorria às lições culturalistas de Franz Boas, contrário a qualquer tipo de evolucionismo, para se distanciar de seus antecessores brasileiros.

Ainda que criticando as teorias que atribuíam uma inferioridade congênita ao negro, Freyre admitia a influência do meio e a possibilidade de transmissão hereditária dos caracteres adquiridos. Recusava o determinismo étnico, mas continuava a usar o conceito de raça, mesmo privilegiando o de cultura, ao contrário de seu mestre Boas, para quem o conceito de cultura deveria abolir o de raça. Discriminava, conforme afirmou no prefácio de Casa-Grande & Senzala, os efeitos da raça e da cultura, mas não anulava as considerações de ordem étnica, ao atribuir um valor psicológico às raças e exaltar o seu cruzamento, o que entrava em conflito com a pretensa superação dos modelos étnicos e biológicos. Afirmava assim, em Sobrados e Mucambos: “A raça dará as predisposições; condicionará as especializações de cultura humana”.

Freyre tomou a raça, o meio e a cultura como fatores inter-relacionados, em que a posição dominante é ocupada ora pelo fator cultural, ora pelo étnico. O povo português teria, segundo ele, uma predisposição para a colonização híbrida e escravocrata dos trópicos, em decorrência de seu passado de povo indefinido entre a Europa e a África. A forte miscigenação praticada na península Ibérica, povoada por levas sucessivas de tribos germânicas e invasores mouros, além das próprias populações nativas, aliada à proximidade geográfica e climática com a África, teria favorecido o êxito da colonização portuguesa nos trópicos. Freyre adotou portanto um culturalismo bastante curioso, pois tomava os fatores étnicos e culturais como sendo mediados pela atuação do meio, no que se afastava de outros historiadores culturalistas, como Sérgio Buarque de Holanda, que publicou Raízes do Brasil em 1936, três anos depois de Casa-Grande & Senzala.

O historiador Ricardo Benzaquen de Araújo julga porém que Freyre criou um conceito de raça original, ainda que pouco ortodoxo do ponto de vista da teoria antropológica. Sua inesperada adesão a explicações étnicas e biológicas adquiria um sentido próprio, já que entendia raça como sinônimo de caráter, resultante de caracteres adquiridos ou herdados. Seguia portanto uma concepção neolamarckiana de raça, baseada na aptidão do homem para se adaptar a diferentes condições ambientais e para incorporar e transmitir as características resultantes da interação com o meio. Atualizava as idéias do biólogo francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) sobre a transmissão hereditária das modificações nos organismos, das quais resultariam as mutações das espécies.

Freyre substituía o evolucionismo biológico de Euclides da Cunha ou Oliveira Viana por um evolucionismo culturalista, em que a raça era enfocada em termos psicológicos enquanto predisposição psicológica, capaz de atuar no processo de mestiçagem. Celebrava o cruzamento de raças e culturas, até então condenado pelos racistas e poligenistas, e destacava as contribuições dos negros e árabes para a cultura brasileira, subvertendo a hierarquia racial e desafiando a pretensa superioridade dos brancos.

Comparou, com base nos antropólogos Nina Rodrigues e Melville Herskovits, os diversos grupos africanos transplantados para o Brasil, cuja contribuição à sociedade nacional enfatizou em detrimento das tribos indígenas, tidas como atrasadas ou inferiores em termos culturais. Apresentou a provocativa tese de que os escravos africanos, sobretudo os maometanos, atuaram como fator civilizatório, ao trazer hábitos de higiene e alimentação que influenciaram os nem tão castiços senhores portugueses. Chamou, em Sobrados e Mucambos, a Bahia de “Virgínia brasileira”, por ser região de mestiçagem intensa, penetrada pelo “melhor sangue que o tráfico negreiro trouxe para a América” e pela “cultura mais alta” que a África transmitiu ao continente americano.

A profunda influência dos africanos no Brasil chegou até mesmo ao nível da fala, modificada e amolecida pelos escravos, que deslocaram a colocação dos pronomes para antes do verbo, dando um novo ritmo e musicalidade à língua portuguesa. O sociólogo procurou incorporar à escrita de Casa-Grande & Senzala tal fluência da fala brasileira, rompendo com a pretensa erudição dos ensaístas que o antecederam.

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